Estradas de alcatrão...ou não


A Nanda não sabia bem como, mas estava sempre a acontecer-lhe: enfiava-se num caminho que tinha a certeza que era o certo e a meio, virava à esquerda quando era para ir para a direita, o cruzamento tão familiar nunca mais aparecia, e aquela reta grande, antes mesmo de chegar ao destino, hoje, logo hoje, não apareceu. Voltas e mais voltas, com mais ou menos tempo, e porque tinha mesmo de lá chegar, o destino lá lhe dava um empurrão e mesmo em cima da hora, conseguia aparecer  em todo lado.
 
O que a Nanda também sabia era que seguir as indicações dos outros também não funcionava lá muito bem. Quantas vezes fez o percurso que o seu irmão mais novo, um perito na condução lhe sugeriu, e o engano não foi pior, foi muito pior. Dava-se ela lá conta de tomar conta e atenção aos pontos de referência "olha bem para lojas, antenas de telecomunicações, casas, quartel dos bombeiros...tudo serve!" Está bem, está... A Nanda gostava de olhar para as pessoas que passavam na rua e sobre as quais construía histórias. Essas, não ficavam quietas e paradas no lugar, de nada serviam como pontos de referência. E gostava das árvores grandes sempre a mudar a cor das folhas, de roupagem.
 
Também ofereceram à Nanda, uma maquineta, gerigonça nova que cuspia coisas maravilhosas como "Vira à esquerda a seguir ao nono cruzamento, contorne a rotunda e saia na 18º saída..." Mas para além dos erros que estas falas falantes também cometiam (de início ria-se muito, muito porque chegavam a errar ainda mais do que ela... e por isso foi parar a uma típica paderia de bairro e o que se riu ela e a senhora quando lhe perguntou "Vende meias?!" "Só se for as de leite, menina!") significava que todos os que quisessem ir para um determinado destino, e partindo do mesmo ponto, fariam exatamente o mesmo caminho.
 
Isso não podia agradar menos à Nanda. E onde ficava a aventura? Os erros, a maravilha de errar, de por vezes doer muito na despesa do carro e na emocional, para logo em seguida, e quando já se sentia em pânico, por mais uma reunião, um encontro de amor, de amizade adiado porque se perdera nas voltas daquela viagem, descobrir que afinal, tinha chegado ao Seu destino.
 
E tudo isto é tão verdade nas voltas e desencontros dos caminhos de estrada de alcatrão, como na vida. A Nanda sabe. Ora lê lá outra vez.
 
 
 
 
 
 
 

Quero muito e tanto

Hoje cheguei a casa e a minha amiga Alice, deixou-me o seguinte desabafo escrito:

"Quero rir mais. Muito mais.

Quero dizer que sim mais vezes. Dizemos poucas vezes que sim ao que gostamos.

Quero abraçar ainda mais.

Quero apenas ficar a ouvir...nada.

Quero ficar em silêncio e escutar o que vai cá dentro.

Quero ficar por ali a dormir, saborear cada momento de descanso.

Quero parar o relógio, mesmo que ele esteja em movimento e sentir cada momento, sem saudade porque o senti em pleno.

Quero sonhar muito e muito alto. Sem cair, sem exageros. Porque os sonhos não sofrem de limite de velocidade nem de vertigens.

Quero dizer que não, sempre que o corpo e a alma se queixe. Porque é demais, já chega ou o limite foi alcançado.

Quero apenas e unicamente ser feliz. Não amanhã, nem depois. Sê-lo apenas agora, mesmo que haja quem diga que "Um dia quando... " ou " Quando eu... ". Chegam os Se´s.

Quero apenas ter a lucidez suficiente para decidir o que é o melhor a cada momento. Sem medo do que virá. "

E fiquei para ali a pensar, no que também eu queria...

Créditos de imagem: Quadro de Joana Lopes

Pirata de coroa -Princesa de pala



E foi tudo para o lixo

Era a lista para as compras.
Lista para as atividades dos miúdos: ballet, Karate, mandarim, como fazer um pudim, ciclismo, malabarismo.
O caderno da lista doméstica: trocar as roupas da estação do ano (ainda existem?), limpar os sapatos, os atacadores, arrumar os livros e pergaminhos da estante que eram da avó. A gaveta do frigorífico e a tábua de cortar a carne. Desinfetar e arrumar. Limpar os wc´s com o detergente azul, a cozinha com o verde. 
Faltava outro caderno da lista do trabalho: marcar 4 reuniões, mandar vir os materiais para as maquetas novas, responder aos últimos 30 mail´s, atualizar o estado no facebook profissional e fazer o pino,  a cada 45 minutos para ativar a circulação sanguínea e incrementar mais ideias.
E ainda a lista da família: tratar do bolo de anos da tia Alzirinha, a prenda da sobrinha mais nova e imprimir as fotos do último Verão em Mira.

Havia claro, uma lista que coordenava todas estas listas. De forma a que tudo batesse certo, não fosse o universo parar de respirar.

Naquele dia, entre muitos post-it de várias cores florescentes diferentes, o quadro de registo desmoronou-se no chão. Ou teria sido ela? 

Os muitos afazeres fugiram das folhas, das listas, das enormes listas e apanhando a janela aberta, fugiram por entre a fresta e lançaram-se no espaço. Literalmente voo tudo para o espaço. Foi-se. Trabalho de horas, raciocínios complexos de tentar encaixar tudo. Foi-se. 

Como fazer, viver ou respirar... sem as listas?

Olhou então para o que tinha ficado em cima da mesa de trabalho, na parede e no quadro de tarefas. Nada. Um vazio. Ou o vazio seria dentro dela?

Pegou num lápis, fechou os olhos. Respirou. Uma, duas, três, quatro vezes. Respirou de novo. Uma, duas, três, quatro vezes. Respirou mais uma vez. Uma, duas, três, quatro vezes. Olhou de novo para as folhas, para as listas, agora vazias. E começou a desenhar, a escrever, o que realmente era importante naquele dia:

  • Sorrir, para dentro. Para fora. Para mim. Para os outros.
  • Rir...pelo menos uma vez, com imensa vontade. Criar situações de riso.
  • Abraçar, mais.
  • Brincar. Atirar-me para o chão, pegar em carros, bonecas, na consola...brincar com eles.
  • Sentir-me grata. Abençoada. 
  • Deixar de listar tanto. Viver.
  • Estar consciente do presente. Do agora. 
E foi assim, que tudo o resto foi para o lixo.


imagem daqui - We Blog You

O meu Zé

Estava a rir. Aquele riso característico de quem sabe o caminho que quer fazer. Nas voltas e curvas, o José conseguia dar ânimo. Espanjava, a torto e a direito muita coisa boa. Havia, por ali, sempre palavras adoçadas e de incentivos. Fazia-o por profissão mas ia mais além do que isso. Estava-lhe na massa do sangue. Conheço o José, ou melhor, conheço o Zé, desde sempre. Facilmente lhe mandava sms ou telefonava. Ali repousava energia a destilar cor vibrante.

Semana passada mandei sms. Só para um café, uma bola de chocolate, ou no caso dele, uma empada e um fino. Mandei-lhe outra. E ainda outra. Nada. Liguei-lhe, uma, duas, dez vezes. Pelas 18h começo a ficar realmente alarmada e, no caminho para casa, faço um desvio e paro à porta do Lote 58. Motorizada à porta. Caixa do correio a abarrotar de publicidade. Toco algumas vezes à campainha, até que, já com o coração numa das mãos e na outra, o telemóvel  a marcar o 112 ou número que o valha, atende uma voz que não conheço. Era o Zé. Não percebo mas lá subo as escadas.

Era, e não era o Zé. A casa, bonita e sempre a destilar cores e sons vibrantes, estava cinzenta. Alias, estava tudo, muito, muito cinzento. 

O Zé olhou-me, fitou-me como só ele sabe. Mesmo estando com o ar desgastado de uma qualquer tareia (ou seriam várias?), estava ali a olhar-me, tristemente e contudo, notava-se alguma doçura lá dentro. A dele. Tão, tão dele. 

Eram já perto das 23h quando saio pela porta do prédio. 
Caramba, às vezes até para o Zé, fica tudo muito, muito cinzento. Uma chatice, uma enorme injustiça no emprego. Um amigo, ou suposto amigo, que fez o que não devia... de novo, trair a sua confiança. Um amor que dói de tanto se querer. Sonhos que ficam adiados. Seja lá o que tenha sido, seja uma, duas ou muitas coisas que deitaram o Zé naquele estado, que na verdade, deita qualquer um abaixo, pela condição humana que ainda se vai tendo, às vezes, fica apenas tudo muito, muito cinzento. Primeiro no coração, depois para os braços, as pernas, a cabeça, estende-se pelos dedos e ... sai! Sem se dar conta, contamina-se o ar em redor e quando a visão fica deturpada, torna-se difícil ver mais além. 

O meu amigo Zé, não é, de forma alguma, um Zé ninguém, é sobretudo um Zé Alguém:

  • alguém que sente por ser, tão, tão boa gente;
  • alguém que continua a querer persistir que o maior sonho que possa acalentar é o de sonhar acordado, com os pés assentes no chão, sentindo-se livre em decidir o que é o melhor para si;
  • alguém que apenas, "apenas-com-aspas", quer tanto e muito ser feliz, que o assume como um caminho e não como uma meta a alcançar. 
O meu amigo Zé-Muito-Alguém só quer ser tratado com o respeito que sabe que merece. Por isso, e depois de um longo e sentido abraço de despedida, o Zé me contava que ver gente feliz por aí era fácil. Gente que vive em castelos cor-de-rosa, com frigoríficos cheios, contas cheias, carros cheios de si, armários e dispensas cheias. Gente cheia de muita coisa. E desprovida de sentido de realidade, de sensatez. Desprovidos dos muitos sacrifícios diários dos Zés. Dizia-me então o Zé, que era tão fácil ter todos os recursos ao pé, e sorrir. Mesmo que esses tontos ou tolos, se queixem, literalmente, de barriga cheia. Não há pachorra que aguente. Estão longe, longe de imaginar, como é a vida atrás das "câmaras". 

Dizia-me então o meu Zé que, conseguir sorrir e, sobretudo, ser insanamente feliz, procurar a felicidade das entranhas, enquanto tudo à volta está muito, muito cinzento é tão ou muito difícil, quanto gratificante em si. Ser feliz, procurar a felicidade, enquanto tudo à volta se desmorona é um ato de bravura, apenas alcançado com os muitos anos e experiências. Estar feliz quando estamos deitados em areias límpidas e águas mornas, em plenas Caraíbas, em boa companhia é quase, quase obrigatório. 

Buscar felicidade no meio de cartas de contas, de portas que se fecham, telefonemas difusos e confusos. De gente que está a leste, que vive em planetas tão, tão diferentes. Isso sim. 

O olhar doce do Zé, continuava lá. Sei que amanhã de manhã, ele já vai ter um plano qualquer para pintar o cinza. Porque o Zé é dos duros e insiste, persiste e quer muito ser feliz, em qualquer cenário. Antes de sair, escrevemos os dois, numa folha que ele lá tinha, e que colamos no espelho de entrada, a seguinte frase: "O que a vida nos der, estamos preparados. É só estar seguro e ser presente!". Descobrimos aqui. E fez-nos sentido.

Amanhã o Zé, já sei que vai ter um plano. Um plano que pode não ser de trabalho, de marketing global ou estratégico-empresarial. Será um plano simples de como ser estupidamente feliz, loucamente feliz, quando tudo à volta o contraria e lhe quer fazer acreditar que o não pode ser. Porque essa, dizia-me o Zé, é o pior poder de todos, a capacidade de inverter as crenças nos outros. E essa, eu sei que o mé Zé, não vai deixar. 






Já meti água.

O que gosto do mês de setembro é que ainda há calor, ainda há um conforto de verão mas menos exigente com as temperaturas. Gosto das cores, com uma tonalidade diferente, a mudar, não tão ofuscadas pela cor intensa do sol.

O que gosto do mês de setembro é porque lhe reconheço um recomeçar de ciclo, talvez pela escola dos pequenos e das minhas.

Da sensação boa de os ter tido bem perto de mim, durante este período que agora acaba, em que nos enjoamos de estar mas que, ao mesmo tempo, nos custa muito quando nos separamos, porque gostamos tanto e muito uns dos outros. E fica a sensação boa dos dias sem relógio, do arrastar das horas, sem pressas vivendo o agora: os salpicos na água, na areia ou em terra bem firme. Dos passeios e descobertas de caminhos novos.

Até da saudade do que já passou gosto. Porque dará alento ao que estará para vir. 

Gosto porque é o mês, em que há uns anos apareci por este planeta. Por isso tem este sabor especial também.

Aproveitando o pretexto, este ano peço um balde de água a cada pessoa que o queira dar. Existe uma região, no Sahel que precisa muito e tanto de nós. Um café a menos cá, pode fazer a diferença lá. Gosto deste pensar global. Desta coisa de, com pequenos gestos num ponto, influenciarmos pequenos gestos, num outro ponto qualquer. E fazer a diferença com a charity water.


Por isso, este ano, o mês de setembro tem outro sabor. Sabor a água.
Oferece-me um balde com água. E o valor, seja ele qual for, vai TODO para este projecto.
Está tudo aqui explicado. Obrigada e Feliz setembro. Que a aventura comece a meter água.






Saiu o euromilhões

Sentámo-nos na esplanada como normalmente a seguir ao almoço. Notei-lhe uma agitação diferente. Um sorriso sereno e feliz. E contudo... havia ali qualquer coisa.

Há mais de dois meses que conseguiamo-nos encontrar por ali. Desde que a Luísa tinha saído da empresa. Mais um corte. No início deste mês estava particularmente preocupada. Neste momento trabalhava a partir de casa mas este mês, em particular, o trabalho ... nem vê-lo. Próximo mês estava quase todo preenchido, mas este... E sentia-lhe a angústia das contas para pagar, da creche dos gémeos, dos impostas, blá, blá... E a Luísa é das que vai à procura. Não se deixa ficar. Avança em várias frentes. Apenas, naquele mês, estava difícil. O que acabou por descobrir foi que, tinha de tirar o melhor proveito daquilo. Lembrou-se então de voltar a redefinir projetos, os profissionais mas também os pessoais.

Chegado ao fim do mês, ali estavamos as duas.
"Sabes? Acho que este mês me saiu o euromilhões!"
O café estava morno mas acabei por cuspi-lo para cima da senhora tia, sentada ao nosso lado. Depois de mil desculpas, de um tira nódas à pressão, virei-me e gritei em surdina:
- Tu o qué?
- Saiu-me o euromilhões. Aliás, bem melhor que isso. Este mês foi difícil. O próximo ainda vai ser mais, mesmo com o trabalho marcado. Sabes como é, os pagamentos que nunca mais chegam, os atrasos. Mas saiu-me o euromilhões.

Como continuava com cara de bispo, em véspera de sexta-feira santa, apressou-se a explicar:
- Reencontrei-me com os meninos. Reencontrei-me comigo, com a comida. Mas sobretudo, reencontrei-me com os meninos. Aqueles dias na serra, em que fomos só os 3... descobri uma nova mãe, que pensei que nem existisse. E falta-me a estabilidade e chateia-me muito nunca saber o dia de amanhã. Mas sabes? Desaparece sempre tanta gente de um momento para o outro e a isso também não se pode chamar estabilidade. E eu sei com o que conto, comigo, com os miúdos e o Zé. Mas aqueles dias em que fui sozinha com os gémeos, fez-me pensar. Não tem preço o tempo com eles. Não tem preço, o pôr-do-sol à beira do lago e nós a atirar pedras para lá, ou a fugir do pastor porque lhe espantamos o rebanho. Não tem preço, sabes? Ou fazermos picniques por ali, porque não há dinheiro para outras mordomias. E temo-nos descoberto tanto, tanto.... Não tem preço. Se quero ganhar mais dinheiro? Quero, quero muito. Mas isto que estou a ganhar, ninguém me poderia dar ou eu comprar. São escolhas, são tempos de Vida. Por isso te digo, saiu-me muito melhor que o euromilhões. A percepção do presente e dos que amo.

E com isto ficámos no silêncio. Eu e a minha amiga Luísa multimilionária. Acho que ainda hoje, ao fim da tarde, vou passar a jogar na mesma lotaria que ela.


Há praias

Há praias maravilhosas em que se sabe que um bom dia de sol vem aí. A temperatura da água morninha em que não custa a entrar. Um areal extenso. O tipo de ondulação certo, que convida ao banho, onde é possível nadar, quase como numa piscina fechada, apenas ... muito melhor. Se num dos dias não se aproveitar tanto o mar, não faz mal. No dia a seguir, mais coisa, menos coisa, vai lá estar o mesmo cenário. Raramente varia. Não se tem muita a sensação de tempo perdido porque quando se perde um momento, logo e facilmente é reposto por outro. E num dos dias até se fica a dormir até mais tarde e já só se vai à tarde, e no outro dia, prolonga-se o almoço e fica apenas aquele passeio de fim de tarde porque afinal, há sempre o amanhã... 

Há depois as outras. Praias em que, apesar de se consultar o boletim de metereologia, a praia é caprichosa. E se a poucos quilómetros está um céu limpo e rasgado pelo sol, ao nos aproximarmos, vê-se um denso manto de nevoeiro. Há dias em que se fica até bem perto do anoitecer, aproveitando um calor pouco habitual para aquela tarde de entardecer, e outros, em que só de casaco vestido e com alguma resistência psicológica, se vai por ali ficando. Banhos, às vezes. Raramente se vêm bandeiras verdes, e isto sem qualquer preferência clubística. Apenas... por ali impera o vermelho. Quanto muito o amarelo e à cautela. Os nadadores salvadores andam num rodopio. Nunca se percebe bem o que vai acontecer, por isso, aproveita-se bem o que há a cada instante. Se está bom tempo, fica-se porque amanhã, nunca se sabe.

Andar por estas praias faz-nos pensar mais no presente. Obrigatoriamente aproveita-se o que há, e isto se se quer ter algum proveito de banhos de sol, de mar e com sorte algum calor. São também muito autênticas. Mostram o vigor, são frontais, têm caprichos. 

Às vezes apetece praias mornas. Outras vezes, praias desbravadas em que se ouvem as ondas, em que se tenta superá-las, fintá-las até, para se tirar algum proveito. Põe-nos à prova e a nossa capacidade de nos adaptarmos aquilo que são capazes de dar. Tal como a vida. Vivendo o presente.