O palavrão


No caminho para o trabalho, fazia o balanço dos últimos dias, do ano inteiro. Dos muitos desafios, obstáculos, das chatices, das pessoas-chatices, melgonas, aborrecidas e que aborrecem. Uma irritação crescente que contaminava já há vários dias, o olhar pela vida, pelos dias.
E enquanto a chuva caía, entre nuvens e um céu azul que até queria espreitar, apercebeu-se da importância dada a essas gentes, a esses acontecimentos. Como quem não quer a coisa, como quem não quer nada, nem se chateia, veio o palavrão em alto e bom som. E por não ser  habitual, ecoou muito mais do que seria desejado.

Foi ali, entre uma rua e outra, entre o trânsito, algumas árvores, a azáfama daquele dia, que  foi para dentro do saco:
  • Os atrasos, de tempos de relógios;
  • As  pessoas que sugam;
  • As contas que não interessam;
  • As chatices da casa, do carro;
  • As pessoas que moem, e ruminam aos nossos ouvidos histórias que não interessam nem ao menino Jesus ou ao coelhinho da Páscoa!
  • O trabalho burocráticos pegajoso e mal-cheiroso;
  • E de novo…as pessoas que mesmo em pequenos momentos atormentam as nossas vidas.
  • ...

Fechou bem o saco e mandou-os a todos para a M… e foi tremendamente libertador. Perceber que é possível enviar todo esse saco de gente e coisas, para a Cochichina, para trás do sol posto, para o raios que o parta (que ainda não se fazem sacos pára-raios!).
Ficou uma liberdade de sentimentos e de ação, difícil de explicar. Mandar tudo o que não interessa e faz mal às nossas vidas, para a M… em alto e bom som!

 Absolutamente tudo.

E são estes os votos. Tudo o que não interessa, o que polui o ar que respiramos, que faz chorar sem motivo aparente, que faça sofrer escusadamente, que não nos liberte para sermos melhores e melhores ainda, tudo isso, sem exceção, vai para o saco.
E a seguir para a m…  
O que fica será certamente melhor.




A chapada

Veio em alta velocidade. Nem deu por ela. Acentou na cara, ficou vermelha a escaldar. E ouviu-se um estrondo, grande, ruidoso. Provavelmente até ao outro lado do mundo. A chapada. Veio sem aviso.

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Ia a duzentos, mil, talvez até dois mil. Ia com muita coisa, muita coisa para fazer, pensar. Uma lista imensa de coisas importantíssimas que não podiam esperar nem mais um segundo. Que eram de uma urgência urgente. Sem falhas, nem interrupções. Conseguiu ir aos CTT enviar mais uns projectos. Urgentes de uma urgência rápida. Virou-se. E foi aí que a levou. Uma chapada imensa, brutal. 

"- Olá Luís! Estás bom?
Era a Alice. A Alice com todo o seu esplendor, sorriso orelha a orelha, como se nada fosse. Como se tudo fosse normalmente banal. 

"- Sim! Tudo! - como atrever-me-ia eu a queixar. "Mas e tu, conta-me. Como estás?"

E esteve para ali a conversar, esquecido do tempo, das urgências urgentes, das reuniões, dos prazos, dos pormenores porque ali, naquele momento, estava-se a ViVeR. Literalmente a ViVeR porque a Alice, sim a Alice não tinha tempo a perder com aquela batalha que estava a travar por dentro, das células boas e das células más. Cancro. E mesmo a Alice não tendo tempo a perder, teve tempo para estarem os dois. Aquele encontro durou o seu tempo. Foi bom, genuíno, verdadeiro, cheio de ViDA e amor de partilha. A seguir cada um seguiu a sua vida, com a promessa de manterem contactos mais estreitos e regulares. Para partilharem o que realmente importa, filtrando as miudezas.

O Luís levou isso mesmo. Filtrar as miudezas. É que quando se leva um estalo assim, as milhentas angustiazinhas diárias ganham outra dimensão. Que chapada.

Dá que pensar, não?


Dedicada a minha querida A.M.