Desculpa

Estava a passar no parque ao final da tarde. Ela não devia de ter mais de trinta anos. Entre a sandes que estava a comer, em jeito de refeição de almoço, o telemóvel ligado numa mão e um caderninho noutra, escrevia para de vez em quando parar e olhar para o rio. Chamou-me a atenção o olhar, cansado mas ainda com um certo brilho no fim. Quando acabou de escrever, arrancou a folha e amachucou-a. Atirou para o caixote do lixo mais perto e virou costas. Não acertou. Fui buscar a folha e li.


Desculpa...

... por todas as vezes em que quis sair da cama mais cedo e não consegui. Os lençois e as cobertas quentem, impediram-me ao agarrarem-me, contra a minha vontade.

... por preferir ver programas sem conteúdo, puro lixo comercial, onde por 20 minutos, desligo a pouca massa encefálica que ainda está a funcionar aquela hora da noite.

... pelas vezes em que fui buscar um chocolate, e outro, e outro e a fruteira ali em desespero a mostrar-me toda a nudez da fruta, em jeito de sedução descarada.

... pelas desculpas que invento, crio e que dão uma trabalheira para não andar mais vezes a pé, faltar ao ginásio, não ir correr, subir uma árvore ou escalar a montanha mais perto. Não me apeteceu.

... pelas vezes em que desliguei o telemóvel porque me apeteceu o silêncio, e nem mais uma sms, um mail, uma chamada nacional ou internacional. Mandem pombos correios. Sempre são mais bonitos.

... pela cozinha em desatino, pelo pó acumulado, por teias de aranhas importadas do castelo da Bela Adormecida. 

Querido Pai Natal, para o ano, vai correr melhor. Por agora é o que temos. Somos humanos e se não entenderes isso, estás na profissão errada mas já chega desta maldita consciência dar cabo de tudo o que era suposto estar a pensar e fazer, para o que se consegue efetivamente fazer. 

Se sabemos exatamente o que nos faz bem, porque continuamos a sentir-nos culpados por tudo aquilo que não nos apetece fazer?

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