Mostrar mensagens com a etiqueta Sevilha. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Sevilha. Mostrar todas as mensagens

195metros

A Valery Melo é uma atleta "amadora" que disso não tem nada. Uma inspiração de Mulher que no espaço de um ano deu a volta à sua vida, quando ao seu marido apareceu a doença ELA - esclerose lateral amiotrófica. Sigo-a aqui porque tal como disse neste texto sobre o antes, agarrei-me a tudo o que pudesse ser alavanca desta ideia de aos 42 anos, fazer 42,195km. 

Numa das suas instastories, perguntei-lhe o que sugeria fazer no antes, no durante e no depois de uma primeira maratona. Teve a gentileza de responder:

Antes: treine muito
Durante: divirta-se bastante
Depois: olhe para essa medalha e acredite que tudo é possível.

Até chegar a Sevilha, houve tantas dúvidas que, com mais ou menos doses de realismos, algumas insanidades mentais  e estaladões virtuais na tromba, das poucas pessoas mais próximas, que sabiam disto, só acreditei de verdade quando, já às portas da cidade, percebi, que ia mesmo acontecer. 

Ainda bem que havia muitos quilómetros a distanciar, uma casa e um dorsal já pago. Houve ali uns segundos de medo de cabeça de formiga a pensar..."Mas que raio estou a fazer aqui? Fo%&#"!!" 

Aquilo tudo parecia-me tão grande, muito mais do que 42,195km. Aquilo ia ser mais do que uma corrida. Ia ser algo muito fora de quem sou ou de quem me imagino que sou: uma tartaruga, simpática sim, mas tartaruga. Experimentarmos outras vidas, na nossa vida dá frio na espinha, no estômago, em todas as entranhas estudadas e nas outras também... para quem, como eu, gosta de ir sentindo os pés bem assentes no chão. E o caricato aqui, era mesmo esse, ia ter os dois pés bem assentes no chão, por várias horas. 

Portanto, depois de vários meses a imaginar se sim, se não, se não, se não, se não, se sim porra, que dei comigo, a pedalar 4km da casa onde ficámos, até ao local de partida. Sim, decidimos ir de bicicleta e depois logo se via como iria conseguir regressar. (E depois dos 42 feitos, fizemos mesmo mais 4 de bicicleta).

Posto de lado a hipótese de ficar nos primeiros três lugares (ahahahahaha), a ideia era dar o melhor, honrar os meses de treino, de entrega, as pessoas que me acompanharam ao longo deste tempo e dar-me uma oportunidade de mostrar que sim. A minha amiga-treinadora, Patrícia, repetiu-me vezes sem conta que merecia estar ali. Por isso, como sei que ela é uma pessoa do bem, acreditei também nas palavras dela e uma vez o bilhete pago, era aproveitar tudo o que as forças iriam aguentar. 

Meia hora antes da prova, junto às grades, despedi-me do Pedro e a partir dali, estava por minha conta. Prometeu-me encontrar, não se sabe bem onde, numa cidade que não conhecia, apenas guiado por aquilo que nos une e, pronto, a app que, supostamente, localizava cada participante.

Procurei-o aos 5, aos 10km e depois disse desisti, na certeza de que era melhor colocar as expetativas a zeros. Os primeiros 10km foram tranquilos, como um aquecimento, a descobrir a cidade, a falar com o meu corpo, a pedir-lhe paciência e coragem. A partir dos 7km fui dedicando quilómetros à minha Maria, ao meu João, e a tantos outros pilares da minha vida. Um km ou mais, para cada uma dessas pessoas bonitas, e por quem sou grata fazerem parte do meu caminho. 

A frescura dos 10km. 
E não, não conheço o senhor que está ali bem disposto.



Perto dos 21km começa algum cansaço a aparecer e aqueles pensamentos irracionais de: E se acabasse já? Meia maratona já estaria feita... E é nessa altura que vem o treino da mente e com carinho firme se vai repetindo que está tudo bem, que é só mais um km. 

Há muitas pessoas na rua que nos olham nos olhos e gritam "Campeón! És una campeón! Fuerza!" E claro que o senhor que ficou em primeiro lugar já tinha passado a meta e aquelas pessoas já o sabiam mas mesmo assim, ali estavam a gritar, àquela massa humana de corredores: Campeónes! 

A verdade é que se vêm muitas histórias ali. Um casal a correr, ela que se percebia que queria desistir e ele, com gestos de carinho lhe dizia que não, só mais um pouco, até que ela pára, com uma bomba para a asma e ele a pega ao colo e quer continuar mesmo assim... Nós que passávamos por eles, batíamos palmas. Descobri, mais tarde, que terminaram juntos.

Muitas crianças com os pais a assistir, estendem as mãos para que lhes demos mais cinco e a todos os que consegui, estendi a mão, imaginando que seriam a minha Maria e o meu João. A todos. E eles deram-me bem mais nesse tocar anónimo de energias bonitas e acreditar. 

Passados os 21km vejo um sorriso, no meio da multidão, a vir ao meu encontro. Encontrei-te!! Não te estava a encontrar!! Estás a ir acima da tua média! Não te estava a encontrar! Queres água? Dá-me um beijo e segue! Vou encontrar-te mais à frente!

Ele não sabe mas, minutos antes os meus pensamentos estavam toldados pela frustração de imaginar correr mais outro tanto, de querer evitar, a todo o custo parar, antes dos 30km e de tantas outras armadilhas da mente. As palavras dele foram melhor do que qualquer gel ou suplemento energético. Deram conforto à alma. Ele tinha-me encontrado. E eu só tinha de continuar. Com ele no coração, imaginei-me com duas das minhas amigas maratonistas, a Madalena e a Patrícia, cada uma de seu lado e foi seguir. 

Inspirada pelo que a Valery Mello tinha dito, passei a festejar cada placa a indicar mais um km, a bater palmas, e quem estava por perto, batia também: Ânimo!! Fuerza!! 

Em cada banda de estrada, dancei. Era massajar a mente, o coração. Mais um passo. Mais um quilómetro por pessoas que trago bem perto do meu coração. Corri pelo Santiago de 5 anos, pelo Afonso de 11, por outros amigos do peito. 


 Aos 30 parei, recompensei-me com uma barra de chocolate e a partir daí foi gerir entre correr e caminhar. Tive outros corredores generosos que batiam nas costas e dizíam: "Anda, só mais um pouquito!" Um animador, vendo já o ar de cansaço, veio ao encontro, e de microfone numa mão, guiou-me suavemente para continuar, correndo ao meu lado por mais alguns metros. 

38km. Olho o telemóvel, vejo uma mensagem da Patrícia que me diz já estar perto e respondo-lhe que aqueles últimos 4km seriam por ela, e por nós, e por aqueles meses de partilhas de treinos à distância. Dou um último arranque, uma última paragem e um novo arranque quando me apercebo que estou já tão perto, que já consigo ouvir a música do fim, que já vislumbro a meta. 

Não percebia bem porque é que quem corre, se refere aos 42,195km. Que diferença fariam aqueles últimos 195m. Foi nesses últimos metros que interiorizei os muitos dias de treinos, o levantar de madrugada, as escolhas feitas em função de uma espécie de plano traçado e que foi preciso conjugar, com os outros desafios do dia-a-dia. Foram nesses últimos metros que o Pedro, voltou-me a encontrar e viu-me a dançar naquela imensa reta final. 



Que veio ter comigo, pegou-me na mão e disse Está quase! Está quase! Com uma alegria imensa estava ali, à minha espera, muito tempo depois da nossa despedida matinal, e juntos, passámos aquela meta. 



















Corri com os meus ténis rotos, com algodão a tapar o buraco porque os novos, comprados umas semanas antes, magoavam-me os pés. Eu compreendo. Os rotos, fizeram todos os treinos, mais do que justo, cortarem a meta depois de meses de trabalhos esforçados. Terminei muito depois do primeiro classificado ter passado a meta e demorei mais do que tinha previsto. E fiquei em paz com isso. Há três anos, não corria 1km. No dia 17 de fevereiro, corri 42,195km.

Por estes dias recebi o vídeo da minha chegada e voltei a sentir a conquista que tudo aquilo foi.

"Depois da maratona... olha para essa medalha e acredita, tudo é possível". 

Que assim seja. 









O Antes

Os antes não têm propriamente uma data marcada. A certa altura começa-se a pensar que talvez seja uma hipótese, um dia, eventualmente, num suponhamos, hipoteticamente pensando, correr 42,195km. Num suponhamos muito longínquo. Porque uma coisa é pensar que até se gostaria de fazer, outra bem diferente é tomar essa decisão. Como, se correr 5 ou 7km já custavam, quanto mais, multiplicar esse número? A imagem que me vinha sempre à cabeça era a de um painel de um carro. Aqueles painéis que começam a apitar: ora é o óleo, ora os travões, ou a bateria ou a gasolina na reserva. O meu corpo apitava, em dias alternados, ora dor no joelho, ou dificuldade a respirar, ou o músculo da perna esquerda... era um painel corporal criativo. Como fazer 42, 195km? 


A minha Patrícia, de que já falei neste Vamos Cuscar, ainda longe de termos esta amizade de hoje, disse-me que era um km de cada vez. E às vezes seria um metro de cada vez ou um passo. Só isso. Ter um plano mais ou menos traçado e agarrar a tudo o que fosse possível para manter o foco no caminho. Não na meta, mas no caminho. 




Posto isto, aos 42 anos, decidi que ia correr 42,195km. A questão é que quando se toma uma decisão destas, não é propriamente a mesma coisa como decidir, vou mudar a cor do cabelo ou aprender a andar de bicicleta. É preciso um plano e tentar fazer a coisa pelo melhor. Resistir às muitas frustrações pelo caminho e gerir com os desafios do dia-a-dia. Há uns anos vi este vídeo da grande Diana Nyad e lembrava-me das palavras dela - Find a way. 


Por isso foi simples, tendo em conta a nossa dinâmica familiar, a única altura possível para treinar era cedo. Muito cedo. Já sem falar nas temperaturas simpáticas que se fazem sentir por estas bandas e que sempre vi como uma bênção, tendo por base a minha teoria de que me iriam congelar os músculos e correr sem dor. Uma espécie de presuntos ambulantes congelados, a baloiçarem-se por aí. E o cérebro. Um cérebro enregelado, naquele estado, sabe lá o que manda fazer ao corpo.


São depois os muitos pormenores que fazem parte deste antes. A minha querida amiga Madalena que, a mais de 130km treinava comigo, pondo o despertador também pelas cinco e pouco da manhã, para corrermos juntas, a separar apenas a distância física; ou então a Ana do Carmo, locutora das madrugadas, da rádio Comercial e que teve sempre a amabilidade e generosidade em responder às mensagens, via redes sociais, com um Bom Dia ou Bom treino. Todo o conforto humano foi bem vindo quando, no silêncio da madrugada, sair da cama, tinha à espera, temperaturas perto ou abaixo de zero. A Madalena e a Ana foram muito importantes nesta reta final de treinos curtos. São poucas as pessoas acordadas por aquelas horas e por isso foi agarrar a quem e a tudo, do que a criatividade se foi lembrando, para me atirar da cama abaixo e seguir.


Nos treinos longos ao domingo, foi a presença da querida Joana que, chegando a meio da meta daqueles dias, trazia sempre boa disposição e muitas partilhas. Descobrimos caminhos novos, comemos laranjas das hortas, assustamo-nos com cães e com mais ou menos cansaços, colocamos conversas em dia. Que companhia boa para distrair as pernas. 


Pelo meio e sempre que os turnos do trabalho não se intrometiam no caminho, tive abastecimentos de água e até de café (!) deste companheiro-na-saúde-e-na-doença-e-agora-também-na-corrida. Ele não desconfia mas, mais importante do que a água, era mesmo ver alma humana com um sorriso como o dele. Que bem que soube!


Neste momento, sei quase de cor, o percurso dos camiões do lixo, bem como a rota dos carros da padaria. Sei também as casas que têm um saco à porta, à espera que lá seja colocado pão fresco ou, a que dias da semana, a carrinha dos frangos, faz a sua entrega e onde. 

A minha primeira corrida foi uma meia-maratona. Foi duro do meio para a frente e só pensava o mesmo que acontece quando se decide ter um filho. É tudo muito bonito durante a gravidez, quando corre bem, mas no parto há ali um milésimo de segundo (ou mais) em que se pensa... mas onde é que me fui meter?!? Não dá para voltar para trás, não? E depois dá-se uma amnésia e passados uns anitos, começa-se a pensar em ter outro. Por isso, foi isso que se passou por estes lados, depois da insanidade da meia. 

Há dois meses, no treino dos 20km, mandei uma sms ao senhor cá de casa, mais ou menos nestes moldes: Estou de rastos! Como é que vou conseguir, alguma vez correr o dobro? Ao que recebi de resposta: Fazendo o mesmo caminho mas agora de volta. A minha Patrícia respondeu algo igualmente animador: Então... com um pé à frente do outro! 

Tal como em tantos outros momentos dos nossos caminhos, há um dia em que se decide que, ou se vai, ou não se vai. E no momento em que se clica no botão de inscrição, é seguir em frente, com um frio no estômago, de quem está prestes a sair, muito para lá da sua zona de conforto. Tão fora como a distância de uma outra galáxia.

A minha Patrícia, a minha coache-mai-linda, disse-me, vezes sem conta:"Quem está na linha de partida já é um vencedor!" E eu não percebia porquê.


No dia 17 de fevereiro, percebi.



Sevilha, 17 fevereiro, poucos minutos antes da partida.

P.S.: Grata a todos os que estiveram neste antes.