Foi apenas mais
um apelo, dos muitos que vemos no facebook. Da primeira vaga de pedidos de
ajuda, deixei passar. Os dias às vezes comem-nos as prioridades para além das
que temos ao nosso redor. Há muitas coisas a acontecer que, mesmo longe, estão
também perto de nós. Desta vez, uma pesquisa mais aprofundada, levou-me até à
Ana e à recolha, na altura, de roupas quentes, sacos de cama e tendas, para um
campo de refugiados na Sérvia. O camião está quase, quase a chegar. Se tudo
correr bem, no final desta semana. Entretanto a Ana já lá está, como
voluntária. Faz relatos de provocação, outras (muitas, demasiadas vezes….) de
indignação porque se recusa a calar. Às vezes sente-se que grita de lá. Ler os
relatos na primeira pessoa dói. Dói mais ainda saber que por serem relatos sem
filtros, porque não está sujeita ao politicamente correcto, são reais. Crua e
friamente reais. A Ana é do caraças. No meio das muitas coisas com que tem que
se preocupar, das muitas histórias que ouve e guarda, arranjou um tempo para
conversarmos à distância. Um dia destes vou dar-lhe um abraço apertado,
apertado ao vivo e conhecer a cor dos olhos dela. A Ana é uma pessoa bonita.
Vamos Cuscar a
Ana?
Idade: 44
Naturalidade: Angola
Comidas preferidas: Cozido à portuguesa
Um livro a não perder: Cem anos de solidão
Se pudesses convidar alguém famoso (vivo ou
morto) para jantar, quem escolherias e porquê?
Zeca Afonso
Enquanto jantávamos podias sempre ir cantando. Admiro-o muito. Para mim é um dos nossos símbolos.
Zeca Afonso
Enquanto jantávamos podias sempre ir cantando. Admiro-o muito. Para mim é um dos nossos símbolos.
Acho que nunca tive vontade de fazer voluntariado...sempre trabalhei na área da exclusão social com toxicodependentes e sem abrigo... foi um processo "natural" . Em 2015 tive o primeiro contacto com esta situação, estive 12 dias num campo em Gegvelia na Macedônia... depois em Portugal continuei a ajudar os refugiados que o nosso país acolheu. Entretanto... o ano passado fui para a Grécia, Atenas, cerca de um mês e agora Belgrado, onde já estou há mais de um mês.
2- Como
se organiza a vida profissional e as saudades dos teus, quando se parte para
apoiar um campo de refugiados?
A vida profissional foi fácil de organizar,
porque estou desempregada, logo tenho disponibilidade. Como não tenho filhos,
nem uma relacionamento, as saudades são da família toda, dos amigos, mas
principalmente dos meus sobrinhos...depois tens dias, em que até consegues
suportar bem...mas nos dias menos bons (e que são muitos) as saudades são
muitas, e sentes falta dos mimos para te ajudar a seguir em frente. Tens as
tecnologias que ajudam a aproximar, mas não é a mesma coisa...
3- Que
verdades não estão a ser contadas sobre os refugiados?
Tanta coisa que não está a ser divulgada. A
principal é as crianças sujeitas a tráfico sexual, a violência que a policia
exerce sobre eles... e depois a quantidade de gente que está a ganhar com isto.
Tudo serve para fazer negócio, para se auto promoverem, organizações, pessoas...
E depois há o lado da irresponsabilidade de muitos voluntários, porque não é só
ter vontade de fazer voluntariado, há que ter muita responsabilidade e acima de
tudo maturidade para o fazer. Estás a lidar com vidas de pessoas, com histórias
de grande sofrimento por trás... e isso envolve um grande compromisso e
respeito, pela sua cultura, pela sua maneira de estar na vida. Eu vi e vejo
voluntários a beberem álcool ou a fumarem haxixe com eles... e isso não é
correcto, isso não ajuda em nada, muito pelo contrário, só faz com que as
pessoas caminhem mais rapidamente para um "abismo"... se pensares que
no seu país por exemplo eles não bebem álcool, ou muitos deles nem haxixe
fumavam... mas aqui em nome do convívio são convidados a fazê-lo. Isto deixa me
completamente fora de mim. Disto também não se fala, porque não convém...
4- O
que mais te angústia aí?
Tudo me dá angustia... mas principalmente,
os miúdos desacompanhados, isso parte-me o coração....depois é estares a distribuir
jantares e perceberes que a comida não vai chegar para todos... Ou ires pedir
cobertores a uma organização e ela diz que só tem ordem para te dar 20....
5- Como
é um dia típico aí?
Não há dias típicos. Eu, por exemplo, estou
envolvida em vários "projectos". Numa manhã posso estar a ajudar na
preparação dos jantares para esse dia, ou a ajudar nos exercícios físicos, ou a
dar apoio no corte da lenha, ou simplesmente estar sentada num dos barracões à
conversa com as pessoas... À tarde, normalmente, ajudo nos carregamentos dos
telemóveis, disponibilizando energia através de um gerador para poderem
carregar os telemóveis, isto normalmente dura até às 17h... depois à noite até
as 21h é o jantar, ajudar na distribuição dos mesmos, controlar os bilhetes...
6- Todos
os dias pensas nos regresso?
Não penso no regresso... Tenho saudades
claro, mas não penso no regresso. Sei que estou onde tenho de estar e é aqui
que faço falta neste momento. Claro que para bem da minha sanidade mental vou
ter que fazer uma pausa, curar as feridas e recarregar baterias...
8- Quantos
portugueses voluntários estão aí? E refugiados?
Neste momento sou a única portuguesa cá,
mas já estivemos 4. Eles foram recarregar baterias para regressarem. Portugal
está muito bem representado aqui, tudo voluntários independentes
Refugiados ... estão neste momento nos
barracões cerca de 1000 pessoas.
7- A
tua ida para aí mudou a ideia que tinhas sobre os refugiados?
A ideia que sempre tive dos refugiados
mantém-se, são pessoas como eu.
Eu própria já estive daquele lado, quando tive de fugir de Angola, com os meus
pais, irmãos e primas... Como em todo o lado há pessoas boas e más, com mais ou
menos educação, com mais ou menos valores....Mudou no sentido de admirar cada vez mais a sua coragem e resiliência para suportarem tudo aquilo que suportam e passam na sua
vinda para a Europa.
9- Estando
nós deste lado, como podemos ajudar?
A ajuda pode ser dada de várias formas,
monetária, apoiando quem está no terreno, com bens quando há campanhas a
decorrer, e todos os dias desmistificando a ideia de que os refugiados são
terroristas e só vão trazer problemas. Portugal também já recebeu alguns
refugiados, as pessoas podem sempre ajudar na sua integração, e isso é muito fácil
de fazer, mesmo sem teres bens ou dinheiro para doar, podes dar 1, 2, 3 horas
do teu tempo, simplesmente a conviver com quem se está a adaptar ao teu país, a
tua cidade ou à tua vila.
NOTA: Para quem quiser saber como ajudar, contactar a Ana Perpétuo, via facebook.
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