O telemóvel tocou pelas 3h30 da manhã. Um sono já muito solto porque o adormecer tinha sido já com a agitação de quem por cá mora e se habitou a estar de sobreaviso.
O telemóvel tocou pelas 3h30 da manhã. Do outro lado avisavam-me da possibilidade de o fogo vir parar perto da nossa casa. "É desta." Levanto-me, molho o terraço onde já estão algumas fagulhas. Abro as janelas viradas para a estrada. Olho e demoro-me no olhar das árvores que todos os dias agradeço por ali estarem. Estou-lhes muito grata. Está vento. Um vento de sortes, de viragens, de humores repentinos. Visto-me, para o que der e vier. Os meninos dormem. Ele está longe, noutros fogos e com o coração cá. Diz-me que queria estar aqui, mais do que nunca, para nos proteger. Sossego-o e digo-lhe que estão outros, com aquela garra e entrega. Ligo-me a gente amiga que está também de sobreaviso, através das redes sociais. Estamos mesmo em rede. Fica tudo em estado de alerta. Pelas seis e meia adormeço. A nossa sorte foi a perda de muitas outras pessoas. Ainda não foi desta.
Há um constante estado de alerta, pelas sirenes, pelo cheiro, pelos aviões que passam de cinco em cinco minutos, por mais uma mensagem que cai a dizer de perigos e pedidos de ajuda. Um "É desta" que se cola a cada um de nós, que por aqui vive. E depois o que fica, o que foi. Uma paisagem morta e que mata também quem vive no meio dela. As gentes repetem: "Está tudo tão triste, tão cinzento, tão negro, tão negro...".
Pó voa
O fogo entrou pelos barracões, subiu oliveiras, rastejou pela erva seca. O fogo comeu a terra. Asfixiaram-se árvores de um tempo mais antigo que os primeiros Homens. O sol era um círculo vermelho e o carro ardeu. Junto ao cruzeiro, os pomares abortaram frutos prematuros e incandescentes. Mãos velhas gemeram e suplicaram vozes por uma milagrosa chuva. Dinossauros e pequenos sapatos derreteram, deixando em combustão os vestígios da infância.
O meu pai tinha os olhos tristes.
A vida ardia.
Nós somos isto e por isso cheiramos a queimado por dentro.
Não choveu. A nossa casa é uma aldeia em cinzas.
A Joana Lopes foi uma das pessoas que viu a sua aldeia de infância e de histórias escurecer. Este texto é dela. Deu voz ao que muitos não conseguem pôr por palavras.
Entristecem-se os olhares e pairam muitas perguntas no ar, que só não tomam outras proporções pelos cansaços destes dias. As pessoas precisam de respostas que tardam em chegar. Até que cheguem e não, a mãe-Natureza continua. Daqui a uns tempos, vão começar novas ervas e fetos a despontar, e mesmo algumas árvores, em jeito de teimosia, vão rebentar novas pernadas, em jeito de mostrar que haverá sempre caminho a fazer, até que também ela, a mãe-natureza, um dia destes se canse. Até lá, estas gentes vão chorar, vão estar tristes mas a seu tempo, vão voltar a caminhar porque são feitos de uma garra bonita de resistência, coragem e acreditares.
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