Chegar ao trabalho, ainda nem eram 8h30 e encontrar no cima da mesa uma folha meio amachucada, com nódoas de uma chávena de café. No topo estava escrito: ler sentada. Do teu amigo Zé.
Demasiado drama para um início de dia, por isso, antes de mergulhar naquele desabafo, quase adolescente, escrito pela mão de um adulto, fui buscar a minha chávena de chá a fumegar.
Virei-lhe as costas. Bati-lhe com a porta na cara e só para mostrar quem é que mandava, atirei-lhe com a jarra da tia Ludovica e gritei-lhe a plenos pulmões:
" N-Ã-O
E-S-T-O-U
P-A-R-A
T-E
A-T-U-R-A-R!!"
Ter-lhe atirado com a jarra, ao amor, seja ele qual for, já depois da porta fechada, não foi a melhor das decisões, mas nestas coisas do amor ninguém disse que havia muita inteligência. Aliás, é a falta dela, nestas ocasiões, que leva as pessoas onde leva. A becos sem saídas, a precipícios rodeados de mar em fúria ou então a um descampado de ideias, apenas com aquela frase a cutucar na testa: "Como é que vim aqui parar?"
Às vezes é isto. Zango-me com o amor. Qualquer tipo de amor: o dos amigos, o das amigas, o dos meus irmãos, o da namorada de ontem e a de há 3 anos, o da minha companheira de agora, companheira no amor; o da minha madrasta que é um amor-sim-senhor mas que insiste em dizer que até pareço o filho dela apenas menos isto ou aquilo. Zango-me com o amor porque não é como nos vendem. Aliás, é das melhores campanhas de marketing feita porque na verdade ilude toda a gente.Em qualquer parte da história da vida de qualquer ser humano, as pessoas se iludem com os seus encantos, esquecendo os efeitos secundários. Ora, se se lêem os efeitos secundários dos medicamentos ou dos rótulos alimentares porque raio também não vamos procurar os efeitos do amor?
As saudades sem chatices, as chatices mesmo que se ame, e o verbo amar, seja em que papel for e que não se percebe muito bem mas que tem momentos de nos fazer zangar. Uma zanga séria, sentida.Uma zanga que começa, inevitavelmente no outro mas que, na verdade começa nas nossas próprias entranhas: o que sentimos, pensamos e sobretudo, o que pensamos que teria que ser a forma de o outro nos amar.
Como é possível o outro não adivinhar? Então não se percebe logo a nossa forma de sermos amados?
Amar dá trabalhinho. O amor fraternal, o de irmãos, o companheiro, o da amizade, os dos filhos e filhas, o amor ao outro. Dá trabalhinho e eu às vezes zango-me com tanto amor diferente. Apercebi-me que esse amor tem sempre a mesma fonte. A nossa, a de cada um. Começando por aí, o resto corre tão melhor. Só aí se consegue fazer as pazes com o amor.
Todos caímos nos seus encantos. Está-me sempre a acontecer. Mesmo sabendo-lhe os riscos. Não resisto ao sorriso dos miúdos quando os arrasto, em cócegas pela casa afora; ou a ela quando a abraço, sem que esteja à espera e digo-lhe que a amo; ao meu pai, companheiro de viagens em silêncio, onde apenas a cumplicidade dos olhares existe. Tantos amores de estrada.
Todos estes amores trazem riscos e mesmo que esteja às vezes zangado com estes amores, que mais do que não são as minhas zangas interiores, não trocaria nada disto pelo seu doce sabor.
Zangas com os amores? Quem as não tem.
Amo-te querida amiga."
Fui buscar mais uma chávena de chá a fumegar. Afinal, há mesmo boas formas de começar o dia.
Foto deste senhor.