E depois há os outros.
Levantou-se e o telemóvel ficou sem bateria, logo agora que ia avisar que ia chegar mais tarde. O carro deu sinal de gasóleo na reserva e as bombas mais próximas, naquele ermo de vida, ficavam a mais de muitos quilómetros. Será que ia dar, será que não?
Sente uma estrada de buracos e ouve uma jante a raspar na berma. Mais um risco para a coleção de riscos daquele carro riscado.
A discussão de ontem ainda bem acesa. As palavras que cortam por dentro como estilhaços de vidro. Foi colocada tanta coisa em causa.
Afinal, quem sou eu?
Pergunta-se uma e outra vez. Pára o carro. Mal abre a porta, porque precisa de respirar aquele ar de montanha, começa a chover. Começa a chover muito, muito. Fica ali a ensopar-se. Já não quer saber.
Afinal quem sou?
A discussão de ontem doeu. Como dói o universo parecer que está a conspirar contra ela. Será? Não acredita. Limpa o rosto, olha lá para o alto do maior pico da montanha que a viu crescer. Saudades daquele embalo de mãe, das cavalitas do pai, das gargalhadas do irmão. Abraça-se a si mesma. E chora. Chora como se quisesse fazer uma corrida com a própria chuva.
Afinal, quem sou eu?
Hoje diferente de ontem. Ontem foi tudo colocado em causa: a sua casa, o seu trabalho, as suas histórias, as suas paixões.
Afinal, quem sou? Limpa o rosto. Limpa a alma e percebe de uma só vez que é nos fragmentos que os outros lhe traçam, que encontra as suas forças maiores. Que a última palavra será sempre a dela, permita-se de uma só vez ter a voz mais alta e mais forte. Calar as outras vozes que falam de ar e vento. Vozes que cobiçam e que se perdem no meio daquela chuva.
Entra no carro toda encharcada e mais leve. A água levou, as dúvidas e incertezas.
Afinal, quem sou eu? Sou eu, e só eu sei, da minha história para contar.
P.S.: Dedicado à minha querida Luísa.
Sem comentários:
Enviar um comentário