Fui sem grandes expetativas. Aliás, o grupo em si prometia, porque é um grupo de há mais de 15 anos para uns, para outros, apenas há três, outros ainda apenas a repetirem esta experiência pela segunda vez. Para mim, e uma outra "caloira", seria a primeira peregrinação.
Levava, no início, uma fé, não sei bem do quê. Sabia, porque o coração me tinha sussurrado, que queria experimentar e viver esta experiência de caminhar vários (muitos) quilómetros, em grupo, percorrendo umas vezes estrada, outras vezes caminhos e atalhos, no meio do nada onde ainda há tempo para ouvir... o silêncio. Um silêncio que me vai sendo precioso, no meio do reboliço dos dias.
Na noite da partida, dorme-se pouco. Um inconsciente que nos vai dizendo para não nos atrasarmos, sonhos confusos que despertam para boleias que se foram embora sem nós (!) e que nos mantém alerta. Pelas quatro, desiste-se do sono e levanto-me para ficar no meu silêncio maior, mesmo com a casa sossegada. Dez minutos são suficientes para alinhar as intenções e o fôco desta viagem. Quando finalmente estamos todos, somos muitos: dez pares de pés, com todas as pessoas, que cada um carrega no coração. Parte-se ainda no escuro. Pé ante pé, contam-se histórias e aventuras de outras viagens enchendo de expetativas, que está a fazer este caminho pela primeira vez.
Já com um sol muito envergonhado, por detrás de nuvens cheias, tiram-se as capas de chuva, tentando a proteção possível destas andanças. Param-se algumas vezes. Volta-se ao caminho. Os experientes vão avisando onde é preciso ir poupando forças e energias. Uma subida, mais outra ainda.
Constantemente rodeados de verde, muito verde. O meu verde que me deixa sempre mais perto... não sei do quê mas que me faz tão bem. Preciso desta cor, deste bem-querer da Natureza. Sinto-me protegida, acolhida. "Depois desta descida, chegamos para comer! Só mais um pouco!"
Uma das pessoas-do-bem deste grupo quis oferecer o almoço, fazendo e deixando tudo pronto, para nos ser levado a este local de paragem. Por isso, quando nos disse, às 5h da manhã, que o almoço iria ser arroz à valenciana, tarte de amêndoa e crepes com chocolate, atirei uma gargalhada ao ar. Julguei que estavam a gozar comigo, por ser ... caloira. Uma espécie de praxa disfarçada.
Mas na verdade não, que esta gente-do-bem não brinca em serviço. Aquele arroz e tudo o resto estavam tão, tão saborosos mas pelo tempero que levaram: uma dose generosa e reforçada de carinho e atenção, que se estendeu aos pormenores da toalha aos quadrados, bordada nos bordos.
Com a barriga (e o espírito) retemperados seguem-se mais umas quantas horas de viagem, com a "ameaça" maravilhosa de umas ditas Retas dos Formigais que, para mim, ficarão, para sempre como uma referência desta viagem. "As retas dos Formigais são o pior! Não há sombra! Parece um deserto, um desterro!" O monstro das retas formou-se de tal forma, na imaginação das caloiras que já imaginávamos histórias loucas, tal descobridores a passar o cabo das tormentas. Fizeram-se como todo o restante percurso: no meio de gargalhadas, de cantorias, de provocações-saudáveis, de paragens sempre que o fôlego assim o pediu.
Vamos tendo notícias de outros grupos que estão em movimento: uns passam por nós, outros já vão mais à frente, outros ainda a sair, outros a chegar. Há muita gente na estrada neste movimentação guiada pela fé e intenções de cada um.
Paramos no local onde vamos pernoitar. Um banho para enganar o cansaço. Os músculos a mostrarem que mandam, a cada paragem mais demorada e a darem sinal de que estão presentes. Um jantar animado para logo a seguir cada um se recolher ao seu casulo e tentar retemperar forças. As possíveis.
Pelas 5, a animação já é muita e espante-se toda a gente com um delicioso pequeno-almoço, da dita pessoa-do-bem-do-almoço e que nos mimou com tantos pormenores.
Distraio-me por momentos, entre mais uma taça de marmelada deliciosamente caseira, um café (sim...levou uma máquina do café e para o ano prometeu a do sumo de laranja...) e uma fatia de tarte, quando vejo quatro ou cinco, de volta dos pés dela. Um carinho e atenção entre massagem às pernas e os pés que são cobertos de pensos... O espírito de grupo e entrega no seu melhor e isto ainda não eram 6h.
Chove lá fora. Faz vento, faz frio. Passo à frente e já não estamos mais no mesmo lugar. Paramos. Mais um café. Avançamos de novo. Paramos mais uma vez. Algo para adoçar, vitaminas espremidas. Avançamos de novo. Um corpo que vai abrandando o ritmo mas que se move, ao sabor do grupo e dos passos uns dos outros. Enganamo-nos uns aos outros, com mais histórias, muitos, muitos disparates. Uma cabeça ocupada, impede um corpo de parar. E sai mais uma onda!
Dizem-me que se aproxima uma subida. Aliás, "A" subida. Que se faz também, pois claro, porque afinal, somos agora mais um para de sapatos que nos guia e se juntou conosco, logo pela madrugada. Sinto-me envolta, cada vez mais forte, neste verde que protege e cuida.
Pelo caminho vamos encontrando caras conhecidas. Com os telemóveis, estamos próximos de outras caras que estão para passar, ou já passaram, pelos mesmos locais. Somos Todos um grupo de caminhantes ou peregrinos.
Quando finalmente chegamos, estou à espera de me desmanchar logo ali. Talvez pelo cansaço, não acontece nada. Escuto-me por dentro, à procura de mim. Procurando encontrar a minha voz, no meio de algumas dores musculares. E novamente um silêncio. A pessoa com mais anos do grupo, que retomou este ano a sua presença, abeira-se de cada um de nós, com um abraço e dois beijos. Agradece, agradece este caminhar em conjunto, estes passos dados a par, uns dos outros. Outra e mais outra pessoa, vai cumprimentando, neste respeito de saber, que juntos chegámos mais longe, nesta humildade de se saber, que sozinho, nos dói tudo mais: a alma e o corpo.
Estremeço por dentro e aos poucos, algo se vai transformando. Fico à espera de jorrar água por mim afora, mal pise o santuário. Fico a sós com a (minha) caloira-mor. Vamos em silêncio, lado a lado. Já nos conhecemos há muito tempo (às vezes, até parece que há muitas vidas...). Só lhe pedi que queria ficar um pouco a sós, na minha espécie de meditação. Olho para as pessoas, para a dimensão daquilo tudo e sinto muito pouco. Não estava à espera daquilo e apanha-me de surpresa. Faço então o que o meu coração manda. Ainda lhe perguntei se queria acender uma vela ou deixar alguma contribuição nas caixas para o efeito. Diz-me que não. Diz-me que guarde esse dinheiro e o envie para quem está a precisar muito dele e que eu sei bem quem é. Manda-me sentar no chão. Fecho os olhos, protegidos pelos óculos de sol e fico entregue a mim e aos meus. Envio-lhes o que espero que lhes possa ajudar. E fico ali em silêncio.
A minha caloira-mor vem de novo ter comigo. Percorremos o recinto. Peço-lhe se podemos ir ver a igreja nova. Parece-me tudo muito grande e a minha espiritualidade perde-se ali.
Percebo então que me senti em paz, sempre que olhei pelos muitos morros, cobertos de verde, pela vegetação, pela chuva, pelo sol que mesmo assim, ainda foi aparecendo, pelo canto dos pássaros, pelos caracóis que quiseram fazer corrida conosco sempre que a chuva aparecia. Ali... não senti nada disso.
Ao longo do caminho fui pensando o que quereria escrever. Arrumar por dentro esta vontade de ser peregrina. Veio-me a frase nesta reta final:
"Não é o destino que importa,
é o caminho."
E foi isto.
Grata pelo caminho.
Grata pelas pessoas-do-bem com quem partilhei esta experiência.
Grata pela casa mãe que nos acolhe e que umas vezes manda chuva, outras sol, outras ainda cobre tudo de verde. Estou muito grata a esse verde.
E para o ano...para o ano há mais :)
Bem haja a Todos!
Sem comentários:
Enviar um comentário